The Smell of Death - Edvard Mvnch, 1895
Essa talvez seja uma das minhas memórias olfativas mais difíceis de serem escritas por não envolver nem a associação com uma pessoa ou um perfume em si. Mas ao longo dos meus anos e das minhas experiências eu percebi que indiretamente a Morte possuí uma memória olfativa marcada em minha vida e não é uma memória olfativa que me perturba, ainda que seja talvez uma das mais intensas que eu tenho. E eu sinto que preciso falar sobre ela por mais difícil que seja fazer isso.
Desde criança tenho lembranças de ir a velórios. Sejam eles de parentes distantes da família, de membros da Igreja onde meu pai foi pastor e no fim de pessoas queridas da minha própria família. Os velórios sempre nos obrigam a lidar com a morte e com existência efêmera da vida. É um momento difícil visto que não somos preparados para a descontinuidade e mudança e nos apegamos fortemente a tudo que nós podemos nos apegar. Mas principalmente nos apegamos às pessoas que amamos e que muitas vezes se vão de uma maneira tão inesperada e brusca.
No dia do velório e enterro do meu pai eu decidi que seria um dos poucos dias que eu não usaria perfume em minha vida. Eu não queria ter nenhum cheiro associado a esse momento e que disparasse memórias posteriormente. Mas mesmo assim elas se criaram de um dia tão triste e que foi um momento tão profundo de transformação na minha vida. Eu me lembro até hoje do aroma quente e úmido do ambiente, pequeno para a quantidade de pessoas que estavam presentes. E me lembro do forte cheiro de flores das várias coroas que foram encomendadas pelas pessoas que tinham tanto amor e carinho pelo meu pai. Olhando retrospectivamente vejo que é impossível não associar nenhum cheiro a um momento desses devido a presença das flores, uma tradição em praticamente todas as culturas.
Quando eu penso nessa memória me vem uma carta do Tarot pois a carta da morte fala justamente sobre a renovação e transformação e sobre a questão do como nós relutamos para isso e fugimos o máximo que podemos. É uma das cartas mais complexas no simbolismo, mas que contém também as flores associadas a sua mensagem. Nas representações mais clássicas vemos a rosa branca estampada em uma bandeira que é carregada pela morte. Tal rosa significa beleza, purificação e imortalidade e pode ser vista na primeira carta que marca o início dos arcanos maiores do Tarot. As flores e o perfume carregam fortemente o simbolismo dos começos e fins, da renovação e da transformação que marcam a morte e a vida.
Perfumar-se está envolvido com esse processo. As próprias flores precisam morrer e passar por um processo de extração de sua essência, uma renovação e transformação para que ganhem vida em belos perfumes que irão marcar nossas vidas e nossas memórias. A existência das flores é efêmera e intensa, porém não é vazia de significado e não é a toa que elas estão muitas vezes no coração e na alma de diversos perfumes. As flores desabrocham, exalam intensamente seu aroma, rendem frutos ao continuar a espécie e renovam-se, morrendo e abrindo espaço ou então sendo colhidas e imortalizadas em aromas.
Os perfumes nos lembram justamente de como a vida é um ato misterioso de começos e fins e de continua transformação. E como nas cartas que representam a morte, nós podemos nos apegar e resistir a esse processo, tentando pará-lo em vão, ou nos rendermos a ele e ver a beleza e profundidade que há nele mesmo que isso possa nos assustar. No fim das contas, perfumar-se é um ato tanto de vida e de morte e um ato de entrega a esse processo de renovação que nós até tentamos adiar mas do qual não temos nenhum controle.
